Sobre a pieguice enquanto modo de conversa. | |
Por José Machado (Professor), em 2012/02/11 | 1611 leram | 1 comentários | 302 gostam |
Falar é isto mesmo, é ter intenção e previsão, mas sem certeza de que elas sejam alcançadas. Nunca se sabe onde vão ter ressonância as nossas palavras. | |
Cascas e aparas – programa de 11 de Fevereiro de 2012 De cada vez que falamos, agimos sem medir o alcance das palavras, estou certo disto, por mais cálculos que façamos sobre consequências possíveis de nossos actos de fala. Falar é isto mesmo, é ter intenção e previsão, mas sem certeza de que elas sejam alcançadas. Nunca se sabe onde vão ter ressonância as nossas palavras. Não há ouvidos pios e de boas intenções está o inferno cheio, também não há falantes inocentes embora o céu espere pelos santos. As palavras hoje mais simples já foram noutros tempos, e hoje são noutros contextos, as mais problemáticas, veja-se o exemplo de palavras como paz e amor e amizade e concórdia e honestidade e honra e promessa e compromisso. Sirva-nos de arrimo para esta crónica o efeito percutivo que estão a ter as pieguices ou queixinhas do nosso primeiro-ministro, feitas em espaço escolar e para um auditório de candidatos portugueses a um futuro incerto. Se ele quis incentivar-nos ao trabalho e à persistência no rigor e na exigência, pedindo que não fôssemos piegas, nem lançássemos a toalha ao chão perante os problemas, mesmo os da educação e do ensino, fez um discurso típico de balneário, só lhe faltando pedir-nos que comêssemos a relva com a fome de vitória. Querendo combater a pieguice, usou-a com a mestria de quem sabe do que fala e agora vai ocupar uma série de amigos a traduzir-lhe as intenções e as previsões. Já há dias outro falante de alto gabarito, o senhor presidente da República, nos brindara com um sermão de comiseração, o tal sobre o valor das reformas, mal entendido por quase toda a gente, infeliz na substância e na forma, disfuncional em matéria de comunicação. Há pouco tempo, o mais alto representante do poder judicial arquitectou um discurso sobre direitos adquiridos para nos fazer crer que nos assiste tal figura de retórica e de direito inscrita no acto da contratação social, mas de seguida, ao querer exemplificar como precisara de dois funcionários de um tribunal para outro, lamentou-se que tivesse sido impossível fazer a deslocação dos mesmos, esquecendo logo ali, à mão de semear e ainda o dia não passara, quanto dissera sobre os tais direitos: ora como haveria ele de mudar funcionários de um tribunal para outro e de terra, se lhes tinha dado, a posteriori, os direitos adquiridos de eles se manterem onde estavam? Dirá o ouvinte o que já ouviu ao não menos intensivo comunicador que é Marcelo Rebelo de Sousa, o quê? - esta elementar verdade de que um homem morre pela boca, ou seja, um homem pensa que diz uma coisa e ouve-se-lhe outra. Porque não te calas? – eis uma pergunta que vem a propósito, até para mim próprio. Foi um rei que a disse a um republicano falador e também cultivador da pieguice como retórica da política. Não quero dizer com tudo isto que é melhor estar calado do que ouvir o que não se deseja. Não, tudo isto é próprio da crise que atravessamos: nas aulas isto está mais que provado: toda a gente fala e toda a gente ouve o contrário do que se disse, mas é preciso estar sempre a falar, uns para acertarem melhor, outros para aperfeiçoarem a arte e outros para experimentarem o poder das palavras. Falar é errar, portanto é aprender. O que se deseja é que de facto os falantes aprendam as lições que vão colhendo de seus discursos: e a primeira e mais importante lição deveria ser a da humildade. Instituiu-se no país o hábito de falar e de falar em directo e portanto teremos que nos haver com as consequências e a principal é sempre esta: o mal é sempre de quem ouve. Pronto, aqui fica a minha pieguice exacerbada, o meu queixume maldisposto sobre os que têm o poder de falar para me motivar e me deixam sempre de orelhas a arder quando os ouço. Mas não deitarei a toalha ao chão e por cada palavra mal ouvida procurarei, sem queixas, uma outra bem intencionada. | |
Comentários | |
Por Cristina Brandão-lavender (Professora), em 2012/02/13 | |
Gostei muito. "Mas não deitarei a toalha ao chão e por cada palavra mal ouvida procurarei,sem queixas, uma outra bem-intencionada." Não será também uma declaração piegas da tua intenção, mesmo que sem queixas? Grande abraço cristina | |